Casa da Pólvora

Patrimônio secular revisto

Uma pesquisa de pós-graduação revê a história da obra centenária do Varadouro e a situação turbulenta por que passava a colônia nos tempos em que a Paraíba respondia como Capitania de Itamaracá

Trezentos anos atrás, a Paraíba respirava ares beligerantes, trazidos pela ameaça de um iminente ataque francês em sua costa. Poucas obras arquitetônicas correspondentes àquele período ainda se mantêm de pé como testemunha do período – e a Casa da Pólvora, recentemente transformada em Centro Cultural pela Prefeitura Municipal de João Pessoa e administrada pela sua Fundação Cultural (Funjope), é uma delas. Uma dissertação elaborada por uma estudante do mestrado em História da Paraíba pela Universidade Federal (UFPB) revê o papel deste patrimônio no desenrolar dos eventos que movimentaram a colônia.

O trabalho de Isabela Carneiro não se debruça exatamente sobre a Casa da Pólvora, e sim sobre o governo do lusitano João da Maia da Gama frente à capitania da Paraíba de 1708 a 1717. Mas toma por base fatos que não deixam de refletir sobre como estava a capitania do início do século XVIII. Para construir a sua pesquisa, ela se baseou na historiografia paraibana, principalmente deixada na obra de Irineu Pinto e do Cônego Florentino Barbosa, e na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, um acervo de documentos avulsos recolhidos da capitania da Paraíba.

“No início do século XVIII, a capitania vivia um momento bastante delicado”, comenta. “O território paraibano se via duplamente ameaçado. No plano externo, o envolvimento português na Guerra de Sucessão Espanhola (1702-1714) provocou desdobramentos nos seus domínios ultramarinos, em especial, no Brasil. O estado de guerra de Portugal x França levou a dois ataques franceses contra o Rio de Janeiro, um em 1710, o outro em 1711”, relata. Por isso, toda a colônia temia um ataque francês, inclusive a Paraíba.

Por outro lado, no campo interno, a Paraíba vivia o receio de um levante da nobreza em decorrência da Guerra dos Mascates, no vizinho Pernambuco. A carta régia ordenando a edificação do monumento data de 1704, mas não se sabe precisar quando a obra foi iniciada. A entrega, em 1710, coincidiu com o ano em que explodiu a Guerra dos Mascates, um momento em que se temia uma incursão francesa na capitania. Por isso, o governador João da Maia fortificou as divisas: mandou levantar trincheiras no caminho para Recife, próximo de onde atualmente se encontra a Igreja Nossa Senhora de Lourdes – hoje, por esta razão, o local é chamado de Rua das Trincheiras.

Outras casas da pólvora

João Pessoa não tinha apenas uma casa para guardar armamentos e munição naquela época. “Antes da construção da atual Casa da Pólvora, iniciada pelo capitão-mor Fernando de Barros e Vasconcelos e concluída em 1710 por João da Maia da Gama, havia na capital três pequenas instalações que serviam de armazém com este fim, embora possuíssem estruturas bem precárias”, cita.

De acordo com registros do Cônego Florentino Barbosa, uma delas ficava na Rua Nova, atual Avenida General Osório, mais ou menos em frente ao Mosteiro de São Bento. A outra, no Passeio Geral (atual Rua Rodrigues Chaves, no Centro). Ambas destruídas pela ação do tempo, porque eram fabricadas com paredes finas de pedra e barro e cobertas de telha, sem abóbada ou forro algum, o que possibilitava a incidência de chuvas que alagavam o seu interior.

Também não possuíam acondicionamento adequado, fator que gerava a corrosão da pólvora em função da umidade. As obras ficavam no meio da cidade, rodeadas por outras residências onde se produzia fogo e, por esse motivo, suscetíveis a incêndios que facilmente poderiam se alastrar por toda a cidade. Além disso, eram alugadas.

“As más condições dos armazéns ensejaram a construção de uma Casa da Pólvora mais bem estruturada e fora da povoação. Assim, começou-se a obra num local estratégico, na encosta da Ladeira São Francisco, onde se pode ver toda a área do Porto do Varadouro com a foz do Rio Sanhauá”, justifica Isabela.

Legado

Além de ser um símbolo do esforço colonizador português no Brasil, a Casa da Pólvora constitui um marco histórico, que guarnece em seus traços seiscentistas uma visita ao passado. Incorporou-se em definitivo à paisagem de João Pessoa como referência de um tempo de afirmação cultural que solidificou a identidade do povo paraibano, hoje integrando a rota dos destinos turísticos. Símbolo de um tempo em que a cidade se resumia à parte alta, detém uma das vistas mais impressionantes para o estuário do Rio Paraíba, berço da cidade.

Point cultural

Em dezembro, a cidade recebeu de volta as obras de ampliação e melhorias do hoje Parque Casa da Pólvora. Agora o patrimônio reassume a sua vocação cultural nas mais diversas áreas, com um novo anfiteatro, auditório e uma sala multifuncional.

Um exemplo desta veia foi acesa no Pólvora Jazz Festival, que reuniu, em março, estrelas da música instrumental que se apresentaram para uma plateia de 2 mil pessoas. A obra hoje abriga um telecentro, galeria de artes e uma estação digital, além da sede administrativa do parque. Também há espaço para a fotografia, com exposição do acervo Walfredo Rodriguez, com fotos antigas de João Pessoa. O monumento recebeu investimentos da ordem de R$ 1,3 milhão, oriundos da Prefeitura e do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan).